À entrada de 1977, a Filipa encontrava-se casada há menos de seis meses e
cerca de uns trinta dias decorria a sua primeira gestação. Partiu então o seu
marido para terras longínquas, à procura de emprego para realizar uma vida
melhor. Contava ele ainda vinte e um anos incompletos.
Uma das três cunhadas já havia surpreendido a Filipa com ar de choro,
semanas antes da partida anunciada pelo Cardinal Rodrigo. Nascera-lhe uma fina
saudade do marido, por antecipação.
A Filipa já imaginava-lhe longe do seu leito. No começo afectava-lhe apenas
o vazio que sua ausência viria provocar; entretanto, foi reconstruindo uma
imagem de um pé-de-bode, onde, à noite ele pudesse recolher, numa caserna de
emigrantes cabo-verdianos da região de Lisboa. E via, no chão molhado da
caserna, lixo húmido misturado com pedaços de tijolo, areia amarela e cimento
branco. Parecia-lhe uma realidade, onde o cheiro sufocante a mofo de humidade ao
frio de um espaço fechado, sem sol, contrastava com uma pobreza seca ao sol,
num chão cimentado bem varrido e portas escancaradas durante o dia, para o ar
campear como bem preferisse. Esta idealidade ambígua aprofundava gravemente a
melancolia de Filipa que, tendo já lido Soeiro Pereira Gomes, Camilo Castelo
Branco, Eça de Queirós e outros escritores portugueses sobre a fatalidade da
tuberculose, tão bem ilustrada nos romances e novelas via essa emigração do
marido como mau prenúncio do seu lar.
Mas o Cardinal Rodrigo tinha que partir, no dia 6 de Janeiro, a bordo de
um navio que demorava oito dias para aportar Lisboa. Tinha que partir da Praia,
capital de Cabo Verde, com a sua malinha de madeira na mão, onde Filipa, toda
trémula de taquicardia, colocara dois pares de calças e camisas, mais um par de
sapatos de função, engraxados.
Uma imensa dor da solidão antecipada e receio de perder algo invadiram
aquele ser franzino, cheio de debilidades que compunham a Filipa, enquanto se
aproximava o enigmático dia 6 de Janeiro de 1977. Na véspera, Filipa não pôde
ir dar as aulas, devido ao excesso de consternação explodida num explícito
pranto, bem partilhado pelo marido, através dum abraço convulsivo e
lacrimejante.
Mas ela não possuía a liberdade de gritar à vontade e na proporção da dor
que sentia. As sacudidelas por soluções violentas são mais audíveis e
indagativos.
- Não chora! E agora olha quem está atrás de ti!!! – avisou
carinhosamente o marido que a cunhada Mita a observava.
Ela desprendeu-se dos braços do marido para acolher o olhar severamente
repreensivo da Mita, carregado de ódio e cobiça, pois era uma solteirona
encravada dos seus trinta e tal anos que nunca experimentara um beijo de homem
na sua rugosa face. E não pôde ficar só
pelo engolir de olhos, despejou:
- Pára de chorar à toa para não matar o meu irmão com águas salgadas dos
teus olhos. Quando uma pessoa embarca não se deve chorar. Ele não é o primeiro
homem cabo-verdiano que embarca, por isso deixa de disparates.
- Mas as dores da Filipa eram tantas que não se conteve em si no silêncio
recomendado. Murmurou em pranto alargado: Eu amo o Cardinal. Amor é um
sentimento que gera, em quem o possui, emoções fortes, baseadas no interesse
pelo outro, como a preocupação, a nostalgia depressiva, a mágoa indomável… Qual
história, não precisa explicar que a cunhada disso não entende.
Todavia, a última noite de nupciais ainda estendia a longa lua-de-mel
decorrida sem sobressaltos. Porém, na madrugada seguinte o marido partia de
casa num bedford com destino à capital do país. Na Praia, a agência de viagens
pregara na porta um aviso de mudança de partida do barco para três dias depois.
E assim começou a ausência do marido em casa, onde concomitantemente
habitavam seus pais, uma irmã e dois netos. A nostalgia tomou conta da Filipa,
enegrecendo o lar e alargou o tempo do dia e da noite de modo decrescente, enquanto
aguardava pela carta de chegada. Passados os oito dias regulamentares da
duração da viagem, a ansiedade aumentava-se e pensamentos negativos e fatídicos
preenchiam a mente de Filipa. Ela ia dar as suas aulas e o convívio com os
alunos anestesiava-lhe as dores, apagando-lhe a memória das horas que passava
com eles. Ao regressar a casa, a saudade do marido vinha em direcção a ela com
tanta força que não conseguia prender lágrimas e gemidos.
Às vezes a Filipa ia ter com a Manita a título de curiosidade, querendo
saber se o marido dela, também embarcado junto com Cardinal havia mandado
carta. Normalmente as cartas eram procuradas nos correios, na sede principal da
aldeia. Qualquer conhecido podia receber e entregar ao seu dono.
Ao décimo quarto dia após a saída dos dois maridos, Manita recebeu sua
carta de chegada e como não sabia ler, foi a Filipa mesma que a leu para ela.
E, entre outros assuntos nela relatados, contava, surpreendentemente, que,
afinal, não partiram para Lisboa, no dia 6 de Janeiro, mas sim, três dias
depois. E não voltaram para casa porque o Cardinal preferiu dormitar a meio do
percurso, evitando chegar a casa para não atiçar a mágoa de despedida.