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terça-feira, 13 de abril de 2010

Primeiro dia escolar

Primeiro dia escolar

Era um dia especial para a minha Tininha. Um sete de Outubro que amanheceu sem sol. Chuviscava até. O caminho que dava para Cutelo de Tinta quase que não se via, um tanto pingado de miúdos de bata branca que se dirigiam à escola, como pelo nevoeiro que embaciava a chã e a ladeira.
Via-a tremer o seu franzino corpo, ora realisticamente, devido a um friozinho provocado, tanto pelo tempo, como pela temperatura do vestido novo de popelina que ia estrear ora, por um medo invencível. O feto foi preparado de véspera. O pai pôs dentro dele uma cartilha já farta de ser esfolheada, um caderno pautado novo, um aparo de tinta e um tinteiro. Havia também um embrulho que depois soube que continha milho assado.
Eu mesma pendurei o feto dela ao meu pescoço e puxei-a, por quatro dedos, para sair do quarto.
E ela não falava, como se fosse noiva de Serelho ! Ela também, desta vez, nem chorou quando lhe fiz as tranças. Pensei: faz agora sete anos, rompeu com o mau costume de chilrear quando esta sendo penteada.
A caminho da escola, depois de alguns intentos da minha parte, Ailama Sednem, a minha querida Tininha conseguiu tirar a boca da coima e desabafou:
- Eu não sei se isso dá certo.
- Mas isso, o quê?
- Hum… Isso de eu ir para a escola. Eu bem que queria e sempre quis ir para a escola para saber ler e escrever. E também para ser Dotora. Mas olha diante de nós: só rapazinhos a ir para a escola. Nenhum menino fêmea vai. Eu insisti com a Antonina, Mélia e Furtada para irmos para escola em Outubro. Elas até queriam, mas as mamãs delas é que não. Ah qual história de meninas na escola! Escola de meninas é coxir e pilar milho, apanhar água, lavar e tingir roupas, cuidar dos animais de casa. Na escola, as meninas vão é aprender a escrever noivos, isso sim, e mais cedo do que for preciso.
- Que coisa menina?! Tomara eu tivesse sorte que agora tu tens. Eu não fui para escola até hoje. Nem tive oportunidade de pensar se queria ir ou não. Nem tive mãe para me dizer essas coisas.
- Nina, olha: eu vou, mas não quero ficar na escola no meio de rapazinhos malcriados. Eles vão se meter comigo e eu choro, certo? Grito e corro para casa. Já sei regressar sozinha.
- Eles não se metem contigo, senão eu dou-lhes bordoada, na ribeira ou na achada, conforme o caso.
- Aian (sim). E o que é que a senhora vai fazer com o senhor professor, que dizem ser ele tão mau como o lobo? Até txuputi (dá beliscões?) e morde.
- Nada. E não é verdade. E já chegamos. É aqui a escola onde vais estudar a primária. Olha lá o Domingos! Ele está grossinho, frequenta a 4ª classe. Já pode tomar conta de ti, miúda. Vem cá comigo para ao pé dele.
Ah, o Domingos é o filho do tio Costa, o nosso vizinho mais próximo na Chã Cardoso. Entretanto, ele aproximou-se de nós, sorridente, com o seu feto de quadrados cinzentos, bem gordinho, porque continha livros de leitura, de Aritmética e Geometria, História e Geografia de Portugal, Ciências Naturais, cadernos quadriculados, pautados e sem linha, para além de pedra e peninha que a Tininha também tinha. Milho assado e batata assada, certamente, estavam lá também. Senti-lhe cheiro de um adocicado misturado.
Resolvi que ela se sentasse sobre a borda da calçada, enquanto aguardávamos pela chegada do Sr. Suetam. Mas ela não aqueceu aquele assento de cimento. Levantou-se e foi apalpar as pétalas da roseira e do cravo que, nessas redondezas áridas, antes de azágua (agricultura dependente das chuvas), só se encontravam na escola. Chegou a sentar-se no chão, no canteiro circular de uma planta. Coitadinha! Também não conhecia os alunos que lá estavam a circular nesse pátio calcetado de basalto negro regular.
Em menos de quinze minutos de espera chegou um homem alto, escuro, grossos cabelos encaracolados, vestido de calças cinzas e camisa de punho branca, bem passada a ferro. Não trazia nenhuma pasta na mão, mas todos os alunos, sentados nos degraus da escada de acesso ao hall de entrada, se levantaram a cumprimentá-lo com um ruidoso “bom dia, senhor professor!”
Tininha levantou-se do chão também, passou as mãos abertas pelo traseiro do vestido para despegar algum pó, que eventualmente lá teria ficado. Ao invés de correr para a porta de entrada da sala de aula, veio em direcção às minhas pernas e agarrou-me com as suas frágeis forças, a chorar, num murmúrio soluçante que eu pude entender:
- Eu vou contigo, agora, para casa. Com esse homem de boca grande eu não fico. Agora tenho certeza: ele morde. É como dizem por aí.
- Oh querida, minha irmãzinha! Dizem isso por aí, mas não é verdade. Ele é como papai. Esses meninos todos são como se fossem filhos dele. E eles vão ficar na escola. Tu não ficas, porquê? Sabes, daqui a pouco vão distribuir aquelas bolachas que tanto gostas. Vais beber leite e antes de ir para casa tens comida quente com galinha ou peixe.
- Mas ele vai-me bater, não vai?
- Em princípio não. E se o tiver de fazer, não será diferente do que papai te faz.
- Mas papai é meu pai. Ele só me castiga se eu errar. E depois, é ele quem me dá o chocolate.
- O Sr Suetam, poderá castigar-te, sim, mas é só se errares.
- Ó meu Deus! Então eu vou levar mesmo e muito. Eu ainda, na escola, só sei errar…
Não havendo outro remédio só restava a Tininha a alternativa de ficar na escola e começar as aulas.
Entrou na sala, tendo eu ficado distante da porta para o caso de ela cumprir a promessa feita: “grito e corro para casa”. Vi que o professor dirigiu-lhe umas palavras em Português. Talvez lhe indicasse a carteira onde devia sentar-se, pois, ela torceu-se um pouco mas dirigiu-se à terceira carteira da primeira fila, a contar da porta.
A fila da 1ª classe continha meninos de sua idade, os mais altos foram colocados no fim da fila. Ela olhou para trás, antes de se sentar. Não conheço ninguém e são todos rapazinhos, desgraçados. O Luizinho, que já era repetente, não perdeu a oportunidade do seu olhar vago, para lhe chamar atenção com uma feia e arreganhada careta. Mas ela virou-lhe as costas e sentou-se, tirando a sua pedra e peninha para escrevinhar.
Um aluno do segundo grau feito andava a ajudar o Sr Suetam na tomada de lições aos meninos da 2ª classe e a ensinar os da 1ª a desenhar “o”, dentro das linhas traçadas e dizer ABC, Antão, Bento, Carlos… que a Tininha bem dominava, porque papai ensinara-lhe desde os quatro anos, com atenção puxada à custa de pau de pilar tabaco.
O Domingos encontrava-se na última carteira da derradeira fila. Mesmo assim, a Tininha foi-se deslocando, esgueirando sorrateiramente, até que se sentou ao lado dele, em busca de protecção. Sentou-se de pernas para fora da carteira, pronta para fugir, caso fosse necessário.
Havia umas regras quanto à saída da sala, no decurso da aula. Um objecto branco era colocado sobre a mesa do professor. O aluno, que precisasse de sair, aproximava-se, silenciosamente da mesa, apanhava o objecto e saía, sem perturbar o professor e a classe que o rodeava para tomar e dar lição.
A norma teria uma dupla vantagem: ninguém precisava de verbalizar o pedido de licença, os alunos só podiam sair, um de cada vez, para fazer xixi e não se juntavam no pátio para arquitectarem traquinices ou para brigar.
Mas Tininha, no primeiro dia, não venceu a timidez. Manteve-se ao lado do Domingos durante as quatro horas e meia de aulas. Não pôde sair nem para fazer xixi. Não é de estranhar a possibilidade de ela ter molhado a parte de traz do vestido novo, sobre a qual se manteve sentada a esfregar durante as últimas horas, olhando de quando em quando, furtivamente para os companheiros da 3ª e 4ª classes que a ladeavam.
Quando o professor declarou “podem sair” eu já tinha voltado à escola para levar para a casa a minha princesinha, para almoçar leite coalhado de vaca com cuscus morno que eu acabara de preparar. E ela chegou à porta entre os primeiros meninos, com ar de cansada e indisposta, mas confiante em mim, saltou para o meu pescoço que, abaixada eu aguardava por seu abraço.
Passado assim o primeiro dia escolar da Tininha, em casa todo o interesse estava centrado no processo de escolarização dessa menina. Estava o pai a explicitar os objectivos que traçara para a menina, sempre espezinhando a mãe, desprezando-a pelo seu analfabetismo: “bu ka kre pa e ba skola, p’e fika sima bo?!”. Não queres que ela frequente a escola para poder ficar analfabeta como tu. Mas ela vai seguir a via académica, mas vai, vai. Ela é muito profeta para ficar como nós.
A mãe da Tininha, coitada, de facto, era a única pessoa em casa que não reconhecia nem o “U” que os burros escreviam no chão. Eu tinha a 2ª classe, sabia assinar o meu nome. O pai, com o 1º grau, ensinava a ler aos meninos da zona. O Mano, dois anos mais novo do que eu, já possuía um 2º grau respeitável. A Mana, que era dois anos mais velha do que eu, ela também era como a minha madrasta. Casou aos 17 anos e o meu cunhado também era analfabeto.
À hora do jantar não se discutia outra coisa. A Tininha não parava de protagonizar a discussão em torno da ida à escola, inserindo relatos sobre o que viu e ouviu ao longo do primeiro dia. Circunscrevia o que sentiu, evitando sempre justificar a razão do vestido molhado trazido da escola.
Sendo a única menina na classe, haveria de passar mais vezes por essa situação. Uma das vezes foi quando estava sentada com o Luizinho, na última fila. Luizinho já era calixadu na 1ª classe, mas sabia “fazer conto” ameaçava a Tininha com um “N ta ba da prussor parti’l bo”. Ó prussor! Alâ… alâ… Mas desta vez ele concluiu a frase: Ala Tininha ta cuspir no chão!
Eis que o professor veio em nossa direcção, observou e o que viu? Isto não são cuspos, oh Luís. Deve ser água dela que se entornou.

Tininha sabia que não tinha levado recipiente com água, reconheceu a benevolência do professor em não a castigar por ter feito aquilo. Mas este chamou-a, no fim da aula, e eu vi os dois frente a frente, mas a minha menina tinha as mãos atrás das nádegas, assegurando, enrolada a parte molhada do vestido.