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sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Dignidade ao Vento e Chover Maresia

 


DIGNIDADE AO VENTO


Estou distante, mas daqui oiço ranger

Dentes e canelas, até ramos de acácia,

Oiço o povo das ilhas a tentar deter

Sobras de enganos e ofertas de falácia

 

Estou distante, mas daqui vejo constranger

Meu povo ao vento como qualquer acácia:

Verga, range, ajoelha e ora p’ra valer

Amor, paz, sossego, quiçá, alegria rosácea!

 

Estou distante, mas daqui sinto franger

Corcundas colunas, torcidas com audácia

Baixam, sem ruindade, semeando beijos a verter

Amor, paz e algo mais para vida com dignidade.

 

Amália Faustino Mendes     25 /09/20

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CHOVER MARESIA

 

Começa a chover, gotejando água

De sabor ácido, nas folhas da mágoa,

Dependurando de árvore façanha,

 Em rajadas nas teias da aranha.

 

Senti a necessidade de me agarrar

A algo disposto a mim, p’ra amarrar

Tal qual a gota, talvez me solte

Como as folhas dum outono à sorte.

 

Eu quis me agarrar a ti, meu predileto

Tecedor da teia de aranhas do intelecto,

Tu consegues ler o emaranhado alfabeto

Da página do outono do meu teto.

 

Meu Outono, da cor do meu destino,

És tu que o desvendas como predestino;

As maresias que sopram do teu mar

 Salgam o coração do meu pomar.

 

Então, podes libertar tua maresia

Que o meu coração é teu, sem asia

Teu mar pode rolar na areia do pomar,

Onde as frutas podes comer ao remar!

 

Amália Faustino Mendes          15/9/2020

terça-feira, 15 de setembro de 2020

EU NÃO PENSEI

 

Eu não pensei

 

Eu já me ia esquecendo da tua existência

Eu já não me recordava da tua indecência

Queria olvidar que detetei em ti um jumento

Montado, sem selim sequer, por momento.

 

Agora, a minha memória, em reminiscência,

Coloca-me no presente a consciência

Duns olhos e olhar esquisito e avarento

Não sei bem se exibiram algo de virulento.

 

Eu pensei nos olhos, a essência da adolescência,

Um fundo castanho, revirando com indecência

Nem pensei na ruindade que vazava ao vento

Respingando gotas necrófagas de amor birrento.

 

Eu não pensei em cair na intumescência

Dum parecer e análise sem excelência;

Eu não pensei reduzir seu estatuto de jumento

E em seu lugar trabalhar sem garantir alimento.

EU CHORO

AS MINHAS LÁGRIMAS!

Eu choro, choro,
E mansamente, choro,
Com paciência, senão pioro

O estatuto de paciente:

- Esta cena se repete como foro.

 

Sempre chorei, ainda que sem ruído...

Sem gritos, ao esconder a dor no peito

Mas assim sempre pioro

 

Minhas lágrimas de sal derretido

Nas costas da ausência de atenção

Evaporam com a fúria da ebulição

Sol em cima, vulcão em baixo,

Em adjacência, pólvoras como lixo

Tóxico interesse e pretensão

Intervalando cada grupo de explosão

Um silêncio melodioso contido

Sob a forma de pacto de paz florido

Agudiza ao ser humano a revolta.

E a mim, todo o mal repelido volta!

 

E eu, sem razão porque adoro

Meu mal e meu mar conservam o amor

Por minha terra amadora

E pioro, sem melodia, sem coro

Amor marinado não se estraga

Mas a maresia ao amor esburaca!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

https://www.youtube.com/watch?v=MNXeVt7yNIc (DESDE 1:19)
SERXIO: “Flor de toxo”, música dos Folkgazais, a banda impulsada por Abel Pérez.
LUÍS: Cinco e XXXXXX minutos. Continuamos co desenvolvemento do programa desta tarde.
SERXIO: O abraço poético continua. Viajamos agora á capital de Cabo Verde.
BERNARDO: Dona Amália Faustino, muito boa tarde!!// Queremos sentir um bocado de inveja: diga-nos como está o dia aí na cidade da Praia. Qual é a temperatura?
ALBA: Senhoras e senhores, estamos em conversa com Dona Amália Faustino, poeta, que nos atende desde a capital da República de Cabo Verde.
Agradecemos o privilégio desta conversa ao escritor Joaquim Arena, que visitou recentemente a nossa terra; e à escritora Analina Rocha, com quem conversamos na semana passada.
BERNARDO: Dona Amália é da Calheta de Sao Miguel? // Sabemos que nesta altura realiza trabalho de gestao, mas foi fundamentalmente professora. É assim?
LUÍS: Diga-nos em que niveis ensinou e em que lugares!
SERXIO: Queremos conhecê-la como escritora. Desde quando faz literatura? // E como é a sua literatura?
LUÍS: A nossa interlocutora conseguiu Mençao Especial no Festival Mundial da Poesía celebrado em Calábria em 2015.
B: Como foi essa experiência na Itália, Dona Amália?
B.: E o que nos diz do Abraço Poético entre a Galiza e Cabo Verde? Como conheceu a inciativa?
SERXIO: Pode nos recitar algum dos seus poemas?
B: Dona Amália Faustino, muito obrigado! Junto com o nosso abraço, vai esta música galega dedicada a Cabo Verde. //Manolo Maseda e os Diplomáticos de Monte Alto.
https://www.youtube.com/watch?v=4A1LJ06v-8Q
ALBA: Era a música de Manolo Maseda, os Diplomáticos de Monte Alto e as Batuko Tabanka. Música afro-galega en Proxecto Neo.
Cinco e XXX minutos. Continuamos.

 

 


apenas sinto a cara molhada
as lágrimas que escorrem
dos olhos que transbordam...
Choro!
Choro por ti, por mim, por nós,
choro pelo mundo
choro pelas crianças mortas
choro pelas crianças que sobrevivem
que ficam feridas, a sofrer
estendidas em camas de hospitais miseráveis
á mercê de serviços médicos sobrelotados
e de médicos cansados!
Choro pelas mulheres presas e torturadas,
violadas e vendidas
choro pelos homens solitários, sem amor
choro pelos animais usados para experiências
choro pelo mar sujo e poluído
pelos aviões desaparecidos e acidentados
choro pelos familiares desesperados!
Choro pelos poetas sem voz
atrofiados por tanto sofrimento e dor
Com a pena seca de tinta e molhada de lágrimas
Sem papel para escrever e que escrevem nas paredes
com sangue fresco, que escorre!
Choro nas noites de pesadelos
Choro ao acordar para mais um dia de sofrimentos
e notícias de mortes, guerras, invasões....
Choro...choro...e partilho com vocês
estas lágrimas mansas
que correm sem esperança
e molham o meu rosto!

  

MEU PRIMEIRO DIA DE AULAS

 

PRIMEIRO DIA ESCOLAR

(Escolarização de meninas no interior de Santiago – década de 60)

 

Era um dia especial para a minha Tininha. Um sete de outubro que amanheceu sem sol. Uma manhã muito enevoada. Chuviscava até. O caminho que dava acesso a Cutelo de Tinta quase que não se via. Estava um pingado, tanto de miúdos de bata branca que se dirigiam à escola, como pelo nevoeiro que embaciava a chã, o covão e a ladeira.

Via-a tremer o seu franzino corpo, ora realisticamente, devido a um friozinho provocado, tanto pelo tempo, como pela temperatura do vestido novo de popelina que ia estrear ora, por um medo invencível. O fêto[1] foi preparado de véspera. O papai pôs dentro dele uma cartilha já farta de ser esfolheada e lida, um caderno pautado novo, um aparo de tinta e um tinteiro, uma pedra e uma peninha. Havia também um embrulho que depois soube que continha milho assado.

Eu mesma pendurei o feto dela ao meu pescoço e puxei-a, por quatro dedos, para sair do quarto.

E ela não falava, como se fosse noiva de Serelho[2]! Ela também, desta vez, nem chorou quando lhe fiz as tranças. Pensei: fez agora sete anos, rompeu com o mau costume de chilrear quando está sendo penteada.

A caminho da escola, depois de alguns intentos da minha parte, Ailama Sednem, a minha querida Tininha conseguiu tirar a boca da coima e desabafou:

         - Eu não sei se isso dá certo.

         - Mas isso, o quê?

         - Hum… Isso de eu ir para a escola. Eu bem que queria e sempre quis ir para a escola para saber ler e escrever. E também para ser Dotora. Mas olha diante de nós: só rapazinhos a ir para a escola. Nenhum menino fêmea vai. Eu insisti com a Antonina, Mélia e Furtada para irmos para escola em Outubro. Elas até queriam, mas as mamães delas é que não. Ah qual história de meninas na escola! Escola de meninas é coxir e pilar milho, apanhar água, lavar e tingir roupas com tintinhas, cuidar dos animais e de casa. Na escola, as meninas vão é aprender a escrever noivos, isso sim, e mais cedo do que for preciso.

         - Que coisa menina?! Tomara eu tivesse a sorte que agora tu tens. Eu quase nem fui para escola até hoje. Nem tive oportunidade de pensar se queria ir ou não. Nem tive mãe para me dizer essas coisas.

         - Nina, olha: eu vou, mas não quero ficar na escola no meio de rapazinhos malcriados. Eles vão se meter comigo e eu choro, certo? Grito e corro para casa. Já sei regressar sozinha.

         - Eles não se metem contigo, senão eu dou-lhes bordoada, na ribeira ou na achada, conforme o caso.

         - Ayân (sim). E o que é que a senhora vai fazer com o senhor professor, que dizem ser ele tão mau como o lobo? Até txuputi (dá beliscões?) e morde.

         - Nada. E não é verdade. Olha que já chegamos. É aqui a escola onde vais estudar a primária. Olha lá o Domingos! Ele está grossinho, frequenta a 4ª classe. Já pode tomar conta de ti, miúda. Vem cá comigo para ao pé dele.

Ah, o Domingos é o filho do tio Costa, o nosso vizinho mais próximo na Chã Cardoso. Entretanto, ele aproximou-se de nós, sorridente, com o seu fêto de quadrados cinzento e branco, bem gordinho, porque continha livros de leitura, de Aritmética e Geometria, História e Geografia de Portugal, Ciências Naturais, cadernos quadriculados, pautados e sem linha, para além de pedra e peninha que a Tininha também tinha. Milho assado e batata assada, certamente, estavam lá também. Senti-lhe cheiro de um adocicado misturado.

Resolvi que ela se sentasse sobre a borda da calçada, enquanto aguardávamos pela chegada do Sr. Suetam. Mas ela não aqueceu aquele assento de betão. Levantou-se e foi apalpar as pétalas da roseira e do cravo que, nessas redondezas áridas, num ano de  azágua sem chuva (tempo de agricultura de sequeiro), só se encontravam na escola. Chegou a sentar-se no chão, no canteiro circular de uma planta. Coitadinha! Também não conhecia os alunos que lá estavam a circular, saltando e correndo nesse pátio calcetado de basalto negro regular.

Em menos de quinze minutos de espera chegou um homem alto, escuro, grossos cabelos encaracolados, vestido de calças cinzentas e camisa de punho branca, bem passada a ferro. Não trazia nenhuma pasta na mão, mas todos os alunos, sentados nos degraus da escada de acesso ao hall de entrada, se levantaram a cumprimentá-lo com um ruidoso “bom dia, senhor professor!”

Tininha levantou-se do chão também, passou as mãos abertas pelo traseiro do vestido para despegar algum pó, que eventualmente lá teria ficado. Ao invés de correr para a porta de entrada da sala de aula, veio em direcção às minhas pernas e agarrou-me com as suas frágeis forças, a chorar, num murmúrio soluçante que eu pude entender:

         - Eu vou contigo, agora, para casa. Com esse homem de boca grande eu não fico. Agora tenho certeza: ele morde mesmo. É como dizem por aí.

         - Oh querida, minha irmãzinha! Dizem isso por aí, mas não é verdade. Ele é como papai. Esses meninos todos são como se fossem filhos dele. E eles vão ficar na escola. Tu não ficas, porquê? Sabes, daqui a pouco vão distribuir aquelas bolachas que tanto gostas. Vais beber leite e antes de ir para casa tens comida quente com galinha ou peixe.

         - Mas ele vai-me bater, não vai?

         - Em princípio não. E se o tiver de fazer, não será diferente do que papai te faz.

         - Mas papai é meu pai. Ele só me castiga se eu errar. E depois, é ele quem me dá doces e fatiotas.

         - O Sr Suetam, poderá castigar-te, sim, mas é só se errares.

         - Ó meu Deus! Então eu vou levar mesmo e muito. Eu ainda, na escola, só sei errar…

Não havendo outro remédio só restava a Tininha a alternativa de ficar na escola e começar as aulas.

Entrou na sala, tendo eu ficado distante da porta para o caso de ela cumprir a promessa feita: “grito e corro para casa”. Vi que o professor dirigiu-lhe umas palavras em Português. Talvez lhe indicasse a carteira onde devia sentar-se, pois, ela torceu-se um pouco mas dirigiu-se à terceira carteira da primeira fila, a contar da porta.

A fila da 1ª classe continha meninos de sua idade, os mais altos foram colocados no fim da fila. Ela olhou para trás, antes de se sentar. Não conheço ninguém e são todos rapazinhos,"xuxos pé-de-ferro, desgraçados. O Luizinho, que já era repetente, não perdeu a oportunidade do seu olhar vago, para lhe chamar atenção com uma feia e arreganhada careta. Mas ela virou-lhe as costas e sentou-se, tirando a sua pedra e peninha para escrevinhar.

Um aluno do segundo grau feito andava a ajudar o Sr Suetam na tomada de lições aos meninos da 2ª classe e a ensinar os da 1ª a desenhar “o”, dentro das linhas traçadas e dizer ABC, Antão, Bento, Carlos… que a Tininha bem dominava, porque papai ensinara-lhe desde os quatro anos, com atenção puxada à custa de kakerada de pó di pila[3] tabaco.

O Domingos encontrava-se na última carteira da derradeira fila. Mesmo assim, a Tininha foi-se deslocando, esgueirando sorrateiramente, até que se sentou ao lado dele, em busca de protecção. Sentou-se de pernas para fora da carteira, evitando prendê-las entre os galhos da mobília e permanecer pronta para fugir, caso fosse necessário.

Havia umas regras quanto à saída da sala, no decurso da aula. Um objecto branco era colocado sobre a mesa do professor. O aluno, que precisasse de sair, para fazer necessidades, aproximava-se, silenciosamente da mesa, apanhava o objecto e saía, sem perturbar o professor e a classe que o rodeava para tomar e dar lição.

A norma teria uma dupla vantagem: ninguém precisava de verbalizar o pedido de licença, os alunos só podiam sair, um de cada vez, para fazer xixi e não se juntavam no pátio para arquitectarem traquinices ou para brigarem.

Mas Tininha, no primeiro dia, não venceu a timidez. Manteve-se ao lado do Domingos durante as quatro horas e meia de aulas. Não pôde sair nem para fazer xixi. Não é de estranhar a possibilidade de ela ter molhado a parte de traz do vestido novo, sobre a qual se manteve sentada a esfregar durante as últimas horas, olhando de quando em quando, furtivamente para os companheiros da 3ª e 4ª classes que a ladeavam.

Quando o professor declarou “podem sair” eu já tinha voltado à escola para levar para a casa a minha princesinha, para almoçar leite coalhado de vaca com cuscus morno que eu acabara de preparar. E ela chegou à porta entre os primeiros meninos, com ar de cansada e indisposta, mas confiante em mim, saltou para o meu pescoço que, abaixada eu aguardava pelo seu abraço.

Passado assim o primeiro dia escolar da Tininha, em casa todo o interesse estava centrado no processo de escolarização dessa menina. Estava o pai a explicitar os objectivos que traçara para a menina, sempre espezinhando a mãe, desprezando-a pelo seu analfabetismo: “bu ka kre pa ela ba skola, p’e fika sima bo?!”. Não queres que ela frequente a escola para poder ficar analfabeta como tu. Mas ela vai seguir a via académica, mas vai, vai. Ela é muito profeta[4] para ficar como nós.

A mãe da Tininha, coitada, de facto, era a única pessoa em casa que não reconhecia nem o “U” que os burros escreviam no chão. Eu tinha a 2ª classe, sabia assinar o meu nome. O pai, com o 1º grau, ensinava a ler aos meninos da zona. O Mano, dois anos mais novo do que eu, já possuía um 2º grau respeitável. A Mana, que era dois anos mais velha do que eu, ela também era como a minha madrasta. Casou aos 17 anos e o meu cunhado também era analfabeto.

À hora do jantar não se discutia outra coisa. A Tininha não parava de protagonizar a discussão em torno da ida à escola, inserindo relatos sobre o que viu e ouviu ao longo do primeiro dia. Circunscrevia o que sentiu, silenciando sempre justificar a razão do vestido molhado trazido da escola.

Sendo a única menina na classe, haveria de passar mais vezes por essa situação. Uma das vezes foi quando estava sentada com o Luizinho, na última fila. Luizinho já era calixadu[5] na 1ª classe, mas sabia “fazer conto” ameaçava a Tininha com um “N ta ba da prussor parti’l bo”. Ó prussor! Alâ… alâ… Só que desta vez ele concluiu a frase: Ala Tininha ta cuspir no chão!

Eis que o professor veio em nossa direcção, observou e o que viu? Isto não são cuspos, oh Luís. Deve ser água dela que se entornou.

Tininha sabia que não tinha levado recipiente com água. A água não exala aquele cheirinho. Então começou a reconhecer a benevolência do professor em não a castigar por ter feito aquilo. Mas este chamou-a, no fim da aula, e eu vi os dois frente a frente, mas a minha menina tinha as mãos atrás das nádegas, assegurando, enrolada, a parte molhada do vestido.

Ao entrar em casa, a Tininha parecia ter levado vestido alheio: entrou imediatamente para o quarto, desenfiou-se daquele vestido, tendo-o metido debaixo da cama.

Percebi o vexame que aquele acto lhe representava, também tratei de não ser curiosa, dizendo-lhe queres tomar banho comigo? Tu esfregas-me as costas e eu faço-te o mesmo, queres? Depois almoçamos sentadas com o corpo fresquinho!

Era um banho de balde e caneca com sabão de inglês. Este era um pacote de sabão azul importado, eu não sabia donde. O que se fabricava no país era castanho e denominado de sabão de terra, feito de óleo de purgueira. Não era preferido para lavar o corpo e caso a espuma entrasse nos olhos passava minutos a fio a arder.

Curiosamente, a purga, enquanto estivesse verde (a nina) podia ser utilizada como brinquedo. Semelhante a pião ela era perfurada e atravessada, ao meio, por um eixo de pau. Esse pauzinho era um raminho da folha do coqueiro ou outro, bem parecido, que servia de eixo sobre o qual ela dançava como um pião. O pião também existia e era feito, de forma artesanal, pelos rapazinhos, a partir de bocados de madeira ou ramos verdes das árvores.

Mas Mana, Zezé cantou “ta codje purga pa n odja-l ta ba liceu”.  Isto agora como é que se explica. Tininha, eu queria ainda lembrar dos jogos cíclicos. Ou era o pião ou era a nina, ou era a praga de papagaios de trapo, jogos de malha para as meninas, as brincadeiras de roda o batuque e o torno no terreiro em que de vez em quando se revelavam talentos masculinos. Uma coisa estranha é ver os rapazes a espancarem as ancas pelos lados como as sacodem as meninas. Normalmente batem-nas no sentido rítmico frente e trás.

Mas vamos ao que Zezé di nha Renalda cantou: “ta codje purga pa N odja-l ta ba liceu, ku se bata branco aibo”, ou seja uma mãe colhe grãos de purgueira para poder ver a filha no percurso académico liceal. Isto quer dizer que purga ou a semente de purgueira que nunca foi comida, era, numa dada altura, em Cabo Verde um produto valioso. Até havia quem a considerasse ouro.

- Mana, papai disse que o ouro é que é o objecto de maior valor no mundo. Então?

- Ninguém disse que purga era ouro, mas é uma forma de a comparar com o ouro num país que nenhum minério tem.

- Oh! E daí? Ah já sei. Faziam-se brincos de nina! Eu já vi a Taivina com brincos da casca de nina. De semente mesmo, nunca vi.

- Tininha, é a semente mesmo que é valiosa. Dentro da nina madura retira-se sementes revestidas de uma crosta preta e durinha, vamos lá ver. Vou até a ladeira e trago-te ninas verdes, maduras e secas para continuarmos a conversa. Espera sentada.

- Eh pá, volta rápido, pois, vou cuspir em cima de uma pedra para tu encontrares ainda sem secar.

- Deixa-te de porcaria, pois eu volto já.

A Nina voltou com as ninas na bandola. As verdes, porque largam nódoas no pano, trouxe-as na mão. Descascou as secas e mostrou as sementes negras, partiu-as e deixou a Tininha ver a parte branca e consistente, explicando-lhe que ela contém azeite. É o azeite da purgueira.

- Pega, Tininha. Mete a unha e vê como fica oleada. Esta semente possui óleo. É aquilo que chamam azeite de purga. Eh, txiga Ivo!

O Ivo nutre pela Nina um grande afecto, um misto de priminho e moço com apaixonite. Mas quando intervém numa conversa ou pretenda falar de qualquer assunto, exprime-se em tom exibicionista com seriedade explicativa, inspira muita confiança.

A purga era o fruto da purgueira, cujas sementes eram esmagadas, cozinhadas e a massa obtida era mantida molhada durante vários dias, em grandes potes, até que o seu azeite subisse à tona para ser desnatado e depois utilizado no fabrico do sabão. Também dos grãos era retirada a casca dura, a parte branca de formato de um pequeno rim era enfileirada num ramo para ser queimada e mantida acesa para iluminar as casas. Chama-se candeeiro de purga. O azeite era e é ainda usado como medicamento de combate a dores e inflamações musculares e articulares.

- Ivo, lembra ma purga inteiro tem valor: o tronco, os ramos, as folhas…. Tininha, olha, a lenha chacinada que tenho no quintal é de purgueira. As folhas podem ser fervidas como chá para as mulheres paridas.

Ah, antigamente as sementes de purgueira tinham valor comercial bastante alto, ou seja, eram vendidas para fora de Cabo Verde.

- Assim, tu entendes que uma mãe que colhia purga, vendia-a para obter dinheiro para pagar as despesas de escola e liceu dos filhos.

 

- Está bem, mana, entendi. Mas eu quando for mais grande vou para o liceu, quem colhe purga para mim? Vou perguntar a mamai.

Nha Benita ainda estava rija. Colhia purga todos os anos. Ela fazia sabão de terra. A casa ficava à beira da estrada ladeada por paredes grávidas perpétuas que, de vez em quando, pariam pedras que desarranjavam o espaço de passagem. Os carros por essas bandas também eram raros. Suas pegadas mantinham-se firmes durante dias a fio, porque não eram pisadas pelos peões que comodamente passavam pelo meio da estrada. Os meninos observavam o solo em competição à porfia, para distinguirem a passagem das rodas das marcas de pegadas de pessoas calçadas com sapatos de solas forradas de pneus. Curiosamente, como a maioria das pessoas passavam aí descalças, os meninos conseguiam identificar as marcas dos pés da Ana de Cialu que possuía características especiais de uma tulipa: os dedos eram todos afastados uns dos outros, de modo mais marcante via-se um vazio entre o polegar e o indicador.

         - Mamai, oras que eu for para o liceu quem é que colhe purga para mim?

         - Ó Tininha, quem é que te mandou perguntar-me por essas coisas?

         - Zezé de nha Renalda é cantou assim: Feia, cabelo bedjo…na na na…. ta codje purga pa n odja-l ta ba liceu. Eu vou para o liceu e tenho cabelo bedjo que nunca deixo pentear porque dói demais.

         - Oh nha filha, eu sempre colho purga todos os anos. Se Deus me emprestar vida e saúde, quando tiveres idade e escola para ires ao liceu eu terei mais purga, faço sabão para vender e ter dinheiro. Se não fizer seca demais os nossos animais crescem e aumentam, vamos vendendo alguns para ficar com mais dinheiro. Não te preocupes, agora é só ires às aulas, prestares atenção, aprenderes bem as lições para passares no exame.

         - Exame é o que é, mamai?

          - É prova que os meninos que forem tirados têm de fazer para passar de classe.

         - Ahn!  Tudo menino não será tirado!!!

É claro que nem todos os meninos eram tirados para o exame ou submetidos a provas de exame. Aqueles, passíveis de perder nas provas não eram propostos. Portanto, havia dois momentos principais de sofrimento para o aluno ao longo do ano lectivo: em Maio, na altura da proposta para o exame ficava na expectativa de ser tirado ou não; em Julho, depois de prestar as provas podia ficar admitido ou não à prova oral e ficar aprovado ou reprovado na classe.

          - Mas tu, que és esperta e já sabes ler e escrever e contar vais ser tirada para o exame e vais passar. Tens um bom professor.

         Bom professor para a Tininha não era a mesma coisa, mas ela já tinha se apercebido que o homem não a tinha castigado quando fez xixi na roupa, tendo ele disfarçado a queixa do Luizinho com o falso entornar de água. Por isso, nesse dia não estava disposta a reclamar de nada acerca do Sr Suetam. Passou a tarde nesse estado de um pouco desconfiada, porém mais assertiva. O Ivo tinha divertido um pouco com nina e ido embora. Tininha jantou sem resmungar muito. Dormiu sono de justo. 

         O Galo cantou pela terceira vez, depois de ter raiado o dia oito de Outubro. A Nina levantou-se para pilar milho que nha Benita tinha kotxido e molhado. Ao amanhecer, era dever das moças maduras apresentar cuscus subido, tudo com pele.

 

        

 



[1]Feto era um saco de fazenda que se fechava por fio torcido, onde os alunos transportavam para a escola os materiais

[2] Trata-se de atitudes típicas de noivas no dia casameno: não falam. A noiva de Serelho foi vestida, penteada e um gancho enfiou-lhe no couro cabeludo e só a madrinha, que a penteava, tomou consciência disso quando viu escorrer sangue pela testa abaixo.

[3] Diz-se Kakerada  quando se bate à cabeça de alguém com o nó dos dedos. Pó di pila tabaco é um pedaço de ramo de árvore de um a dois centímetros de diâmetro com que se mói o tabaco torrado.

[4] Profeta aqui tem sentido de atrevida, mania de sabichão

[5] Calixadu – calejado de tanto tempo permanecido na mesma situação