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sábado, 14 de maio de 2011

Era o meu primeiro carro

Contava ainda os meus cinco anos de idade quando arranjei o meu primeiro carro. Ainda me lembro, de memória fresca e lúcida como se fosse agora, recordando-me das meninas e rapazes da brincadeira, suas vestes e vejo a minha mãe com a sua saia preta às pregas, uma camiseta de saco-branco, bem alvo e conta de terço no pescoço. À laia de muitas mulheres, ela não usava o rozadi branco, devido a conotações menos sagradas desse tipo de conta.

A nossa casa situava-se no nosso terreno de cultivo e cada vizinho possuía arredores de cultivo com uma casa de uma porta e duas janelas na fachada ou duas portas, sem janelas. O quintal e a rua interior eram dois espaços maiores onde a família e os visitantes se agrupavam para conversar e comer e era onde as crianças recreavam. Dentro de casa, com menos iluminação e arejamento era espaço com poucos compartimentos de dormida, com despensa de comida e servia de transição entre a rua e o quintal.
A nossa habitação possuía duas janelas na fachada e uma outra na empena, esta era mantida sempre aberta como sinal de presença de gente em casa.


Quando brincava em casa da tia Mulatinha com Béne e Elvina, para lá iam também outros miúdos, como a Nandinha, o Paty e a Linda. Quando entrava Dimingo e Ntoni no grupo, um de nós terminava o dia com cabeça partida e rio de sangue desaguado na roupa.
Através da janela de empena, a minha mãe controlava, de longe, o meu comportamento e todo o movimento que fazia. Dirigia-se numa voz grave, a alguém, se estivesse numa situação de rélax. Mas quando fosse necessário, gritava-me com aquela vozinha aguda, diferente do seu habitual, que parecia sair por um túnel de vários buracos estreitos. E o meu nome, Itília, soava assim: “Guipíliâ huu!” O eco do covão de frente de casa e o retorno da Lapa de Simão faziam prolongar e confundir as sílabas que ela pronunciava nesse tom agudo.
Às vezes eu fingia não escutar o chamamento da mãe, preferindo continuar a brincar com os colegas, pois, estando em casa, onde era a única criança, sentia-me no isolamento ou mergulhada no excesso de mimo dos adultos, o que não me permitia adoptar um modus vivendis reflectido. Em tudo o que eu fazia era guiada milimetricamente, até parecia que ninguém confiava nos meus passos.
A oração da manhã da minha mãe terminava oferecida ao meu anjo da guarda, pedindo-lhe que me acompanhasse ao longo do dia e da noite, livrando-me de todo o mal e dos pecados do mundo. Destacava-me como pecado, recomendando-me a não desrespeitar as pessoas adultas, não dizer más palavras, não furtar, nem tocar nas coisas dos outros, nem prejudicar alguém ou aceitar ofertas de qualquer origem.
Na realidade, as necessidades e as tentações surgem que nem sempre se dá ao tempo de avivar na memória de uma criança as recomendações apenas ouvidas ou quando muito, decoradas, sem passarem pelo fórum de uma reflexão consciente.
Durante as sessões de brincadeira com as colegas crianças, cada qual leva objectos de diversão que possuísse. Imagine-se uma localidade do interior, uma aldeia pobre a todos os níveis, incluindo a o da mentalidade, o que é que os meninos e meninas possuem como brinquedo?!!!
Uma invejável boneca de trapo que a minha irmã Veninda talhava e costurava à mão e enchia o tronco inteiro com pedacinhos de tecido ou de algodão. Cortava, num pano branco, o tronco e duas pernas sem joelhos, nem pés, quanto mais os dedos. O pescoço era um cilindro do mesmo pano branco, enchido à parte, cuja base era costurada no tronco. A outra extremidade levava fios pretos ou castanhos como tranças de cabelo. Da mesma cor de linha ela assinalava os olhos, o nariz e a boca distribuindo-os, equilibradamente, ao logo do cilindro. Duas tiras cobradas, sem recheio, ela cozia ao tronco a perfazer os ombros. Todo o vestuário da boneca era trabalhado pela Veninda, com tal esmero que nenhum colega ousava concorrer comigo na passagem de modelo de bonecas. O que era de esperar era o desaparecimento constante de vestido, saias, blusas da minha boneca. Isso saía mesmo do mapa local.
Uma vez, numa monda em Chã pa Riba, Veninda tinha muita gente no trabalho que conseguiu em junta mão. A mãe da Nercia estava presente nessa monda, mas teve que levar a menina para a ladeira, porque, era o tempo de azágua, ninguém tinha disponibilidade para ficar-lhe com a filha. Para que ela ficasse distraída à sombra de uma purgueira até a hora do almoço, a menina levou uma boneca na mão e um embrulho com cuscús e leite açucarado a castanho - o açúcar de terra.
A Veninda que reparou na boneca e viu-a vestida de uma saia e uma blusa que ela havia costurado para a minha boneca, benzeu e rezou para que eu não aparecesse no local. Mas estava marcada a minha ida para lá, na hora do almoço, junto com a minha mãe, ao levar a comida, já que não havia ninguém grande em casa na vizinhança para me acolher.
Por volta de meio-dia chegamos ao terreno da monda, à sombra do grande pé de purga. Minha mãe levava à cabeça uma cunda de feijão com toucinho, couve, batata de Serra e mandioca, que a vi preparar. Na mão uma tigela grande de cherém. Tudo isso exalava um apetitoso almoço para quem tinha passado metade do dia a puxar pela enxada. E eu levava na mão, a minha boneca de trapo, toda vistosa e roupa bem combinada que parecia gente chegando a uma festa de Nossa Senhora do Socorro. Mal me alegrei por ver uma menina desconhecida que parecia ser do meu tamanho e idade, uma lança atravessou-me no peito: reparei na boneca que ela tinha no regaço a pentear. Também era de trapo e estava vestida com duas peças que eu me recordei delas como minhas. Procurei conter a cólera que me invadia. Aproximei-me dela com um carinho trémulo de raiva e rocei a minha mãozinha na cara dela, perguntando-lhe como se chamava. Travando um diálogo amistoso, ela respondeu-me, com um sorriso confiante: meu nome é Nércia. e queres cuscus com leite? Não, não quero, posso ver a tua menina? Sim podes.
Mas a boneca estava sem cuecas por baixo, reparei nela, quando a minha intenção me impelia despi-la. Seria falta de respeito ter uma boneca nua na frente das pessoas que vinham almoçar naquela hora. Resolvi conversar com a Nércia para saber como foi que ela arranjou tanto a boneca como a respectiva roupa. Aos poucos e naturalmente, ela foi-me fornecendo informações a ponto de eu ficar a saber que ela é sobrinha do Béne e da Elvina. Só faltava saber quem havia furtado as roupas da minha boneca para ela.
Elvina era uma menina com pouco mais do que a minha idade, singela e muito benevolente. Gostava muito de mim e nunca deixava que eu chorasse. O Béne era um pouco traquinas e mexia nas nossas brincadeiras de menina para nos irritar. Até as escondia ou as danificava. Lembrando-me de algumas peripécias desse menino, desconfiei que ele deve ter sido o sujeito de alguma má acção ou pecado.
E, sem questionar, a Nércia perguntou-me se eu queria saber quem é que lhe arranja roupas para a boneca. Claro que quero saber. Talvez essa pessoa me possa oferecer algo para a minha boneca também!
Ele é meu tio e muito meu amigo. Gosta de mim muito. É o Béne que me dá roupa de boneca. Ele gosta muito de me carregar ao ombro. Também me dá bolacha com açúcar de terra. Ah! Seu ladrão!!! Vai-me pagar!!! - pensei.
Mas a Nércia não entendeu nada, não se deu conta de me ter fornecido informações importantes. Brincamos numa amizade normal até ao fim da tarde. Fomos para a casa no fim do dia da monda. Jantei pouco porque estava intranquila e mergulhada num dilema. Não discernia bem o que podia do que queria fazer com o Béne. Ele era mais novo do que eu, em idade, mas enquanto menina não podia brigar com ele, porque se não ele levava-me a melhor.
Na manha seguinte que era um domingo, a minha mãe ia sempre à missa na igreja católica da paróquia de S Miguel. Quase sempre me arrastava para a missa. No tempo de azágua, devido às ocupações da época, nem sempre era possível ter a pouca roupa preparada para viajar, pelo que nesse domingo teria de ficar em casa dos pais do Bene, que não são católicos praticantes. Ficar em casa deles era uma oportunidade que eu podia saber aproveitar bem ou mal.
Começamos a brincar na rua, quando se juntou o grupo habitual o Remis e o Olijú que, normalmente, vivem em suas casas, isolados do resto da criançada da zona. O Remis era produtor de viaturas, casas de caixas e outras miniaturas de objectos em armações de arame e latão. Vi que ele conduzia um lindo camião de arame que transportava dentro carrinhas construídas em lata de sardinha e arame, com rodas de tampas de garrafas em cortiça. Todos nós tivemos boleia na condução do camião. No fim, em virtude da insistência do Béne, o Rémis ofereceu-lhe uma carrinha de lata de sardinha que o colocou numa situação de insuportável vaidade em relação a nós todos. De tão encantados que nós todos ficámos foi difícil para qualquer de nós, ir responder os pais que nem almoçar queríamos ir, quando fomos chamados. Entrei para dentro de casa deles, a simular que ia também almoçar. O interesse era o de estimular os meninos a entrarem, mas eu não ia comer. Para além de não estar em minha casa, a inquietude não me deixava apanhar nenhum bocado. Voltei para a rua enquanto os meninos entravam. Cruzei com o Béne no meio da casa, e vi-o a encostar a carrinha junto à parede para ir comer no quintal. Ouvi várias colheres a zunir nos pratos de esmalte, como sinal de que todos estavam a comer. Então virei para a minúscula viatura, levantei-a do chão e pulei o batente da porta de saída como se fosse uma macaquinha que arrebatou a mandioca na ladeira. Parti com ela para a minha casa a pensar que tinha acabado de adquirir o meu primeiro carro, iníciando uma desforra que podia ou não prosseguir. O orgulho de ter uma viatura era, por outro lado outra justificação para o meu comportamento.
Cheguei a casa, a mãe que tinha acabado de regressar da missa e ainda não tinha desapertado o pano de obra bicho que teria estreado nesse domingo, não permitiu, que eu enrolasse nela com o corpo cheio de pó, pois andava a brincar com os colegas, sentadas no chão de terra batida. Contudo, pude mostrar o meu carro à mãe, que, no momento não prestou muita atenção à novidade. Entrou no quarto e trocou a roupa de domingo pela de casa e voltou para a sala, retomando a conversa comigo: então que coisa é essa que arrastas pela corda? Mãe, este objecto é um carro e é meu a partir de hoje.

A mãe que sempre dedica algum tempo a rezar, pedindo a Deus que me proteja de todo o mal e me aconselha todos os dias a não pecar, quis então saber como foi o processo de aquisição da viatura. Expliquei-lhe que a encontrei na rua da casa de Mutalinha. Ela se apercebeu que eu fugia a uma resposta verdadeira e eu desconfiava que essa mulher crente e temente a Deus fosse me dar razão por furtar a quem me tivesse roubado. Essa minha mãe nunca aceitaria uma justificação de tirar esse carro ao Béne, por este ter favorecido a boneca da Nércia com as roupas da minha, que roubara. Costumava dizer que ladrão que rouba ladrão tem sete anos de perdão, mas por outro lado recapitulava sempre “em minha casa não nasce, nem cresce ou vive um ladrão” e “mulher ladra perde toda a sua existência, ainda que bem cedo abandonar o vício de furtar” .
Então, quando a minha tomou a consciência de que se encontrava perante uma situação de roubo a ser escondido em casa, que estava a nascer-lhe uma filha ladra a perder os cinco anos de existência, não pensou duas vezes e disse-me em murmúrio típico de um tamanho segredo:
- Minha filha, antes de almoçares, volta com essa coisa apanhada, leva-a directamente para o local onde ela se encontrava quando a tocaste. Ainda vais a tempo de encontrar esse lugar marcado. Coloca-a no mesmo sítio, nem mais para a cima, nem mais para baixo e não falas nada a ninguém, volta de imediato para casa. Depressa!!!
Com o coração despedaçado, a pulsar junto à boca, levei aquela armação de lata e arame e coloquei no chão, com a corda ainda enroscada. Voltei para a casa, arrancando na primeira velocidade seguida directamente para a quarta e cheguei mais esbaforida pela apreensão, constrangimento e arrependimento do que pela canseira da corrida.
E eu nunca mais tive carro de lata de sardinha, nem cobicei as coisas dos outros. E não levei pertences de outrem para a casa da minha mãe, porque ela não as permitia lá ficar. E agora que tenho a minha própria habitação é a minha consciência bem formada que me impede de desejar qualquer propriedade de outras pessoas.

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