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segunda-feira, 12 de março de 2012

Uma fina saudade




À entrada de 1977, a Filipa encontrava-se casada há menos de seis meses e cerca de uns trinta dias decorria a sua primeira gestação. Partiu então o seu marido para terras longínquas, à procura de emprego para realizar uma vida melhor. Contava ele ainda vinte e um anos incompletos.
Uma das três cunhadas já havia surpreendido a Filipa com ar de choro, semanas antes da partida anunciada pelo Cardinal Rodrigo. Nascera-lhe uma fina saudade do marido, por antecipação.
A Filipa já imaginava-lhe longe do seu leito. No começo afectava-lhe apenas o vazio que sua ausência viria provocar; entretanto, foi reconstruindo uma imagem de um pé-de-bode, onde, à noite ele pudesse recolher, numa caserna de emigrantes cabo-verdianos da região de Lisboa. E via, no chão molhado da caserna, lixo húmido misturado com pedaços de tijolo, areia amarela e cimento branco. Parecia-lhe uma realidade, onde o cheiro sufocante a mofo de humidade ao frio de um espaço fechado, sem sol, contrastava com uma pobreza seca ao sol, num chão cimentado bem varrido e portas escancaradas durante o dia, para o ar campear como bem preferisse. Esta idealidade ambígua aprofundava gravemente a melancolia de Filipa que, tendo já lido Soeiro Pereira Gomes, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós e outros escritores portugueses sobre a fatalidade da tuberculose, tão bem ilustrada nos romances e novelas via essa emigração do marido como mau prenúncio do seu lar.
Mas o Cardinal Rodrigo tinha que partir, no dia 6 de Janeiro, a bordo de um navio que demorava oito dias para aportar Lisboa. Tinha que partir da Praia, capital de Cabo Verde, com a sua malinha de madeira na mão, onde Filipa, toda trémula de taquicardia, colocara dois pares de calças e camisas, mais um par de sapatos de função, engraxados.

Uma imensa dor da solidão antecipada e receio de perder algo invadiram aquele ser franzino, cheio de debilidades que compunham a Filipa, enquanto se aproximava o enigmático dia 6 de Janeiro de 1977. Na véspera, Filipa não pôde ir dar as aulas, devido ao excesso de consternação explodida num explícito pranto, bem partilhado pelo marido, através dum abraço convulsivo e lacrimejante.
Mas ela não possuía a liberdade de gritar à vontade e na proporção da dor que sentia. As sacudidelas por soluções violentas são mais audíveis e indagativos.
- Não chora! E agora olha quem está atrás de ti!!! – avisou carinhosamente o marido que a cunhada Mita a observava.
Ela desprendeu-se dos braços do marido para acolher o olhar severamente repreensivo da Mita, carregado de ódio e cobiça, pois era uma solteirona encravada dos seus trinta e tal anos que nunca experimentara um beijo de homem na  sua rugosa face. E não pôde ficar só pelo engolir de olhos, despejou:
- Pára de chorar à toa para não matar o meu irmão com águas salgadas dos teus olhos. Quando uma pessoa embarca não se deve chorar. Ele não é o primeiro homem cabo-verdiano que embarca, por isso deixa de disparates.
- Mas as dores da Filipa eram tantas que não se conteve em si no silêncio recomendado. Murmurou em pranto alargado: Eu amo o Cardinal. Amor é um sentimento que gera, em quem o possui, emoções fortes, baseadas no interesse pelo outro, como a preocupação, a nostalgia depressiva, a mágoa indomável… Qual história, não precisa explicar que a cunhada disso não entende.
Todavia, a última noite de nupciais ainda estendia a longa lua-de-mel decorrida sem sobressaltos. Porém, na madrugada seguinte o marido partia de casa num bedford com destino à capital do país. Na Praia, a agência de viagens pregara na porta um aviso de mudança de partida do barco para três dias depois.
E assim começou a ausência do marido em casa, onde concomitantemente habitavam seus pais, uma irmã e dois netos. A nostalgia tomou conta da Filipa, enegrecendo o lar e alargou o tempo do dia e da noite de modo decrescente, enquanto aguardava pela carta de chegada. Passados os oito dias regulamentares da duração da viagem, a ansiedade aumentava-se e pensamentos negativos e fatídicos preenchiam a mente de Filipa. Ela ia dar as suas aulas e o convívio com os alunos anestesiava-lhe as dores, apagando-lhe a memória das horas que passava com eles. Ao regressar a casa, a saudade do marido vinha em direcção a ela com tanta força que não conseguia prender lágrimas e gemidos.
Às vezes a Filipa ia ter com a Manita a título de curiosidade, querendo saber se o marido dela, também embarcado junto com Cardinal havia mandado carta. Normalmente as cartas eram procuradas nos correios, na sede principal da aldeia. Qualquer conhecido podia receber e entregar ao seu dono.
Ao décimo quarto dia após a saída dos dois maridos, Manita recebeu sua carta de chegada e como não sabia ler, foi a Filipa mesma que a leu para ela. E, entre outros assuntos nela relatados, contava, surpreendentemente, que, afinal, não partiram para Lisboa, no dia 6 de Janeiro, mas sim, três dias depois. E não voltaram para casa porque o Cardinal preferiu dormitar a meio do percurso, evitando chegar a casa para não atiçar a mágoa de despedida.

  

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